A Palavra Livre de Mortágua

Sábado, 25 de Outubro de 2008
Força, Força Camarada Vasco

O texto que se segue viu a sua publicação recusada na Defesa da Beira.

 


«São nacionalizadas todas as instituições de crédito com sede no continente e ilhas adjacentes»
Assim versava o Decreto-Lei n.º 132-A/75 de 14 de Março. Com ele iniciava-se uma nova fase na vida económica portuguesa. Era, a este tempo, Primeiro-Ministro do II Governo Provisório o General Vasco Gonçalves. À nacionalização da Banca outras se seguiriam: Seguros, Transportes, Indústria Pesada…
Mas não é para falar do Companheiro Vasco, como tão carinhosamente o povo português o apelidou nesse já longínquo ano de 1975, nem para falar do PREC (Processo Revolucionário Em Curso) que escrevo estas linhas. A situação hoje é bem mais grave e com nenhumas perspectivas de se resolverem por via de Decreto.
Temos seguido com mais ou menos atenção, mas por certo com alguma preocupação as notícias da crise que nos assola. Mas admito que nem sempre é fácil perceber o que os dizem os economistas, e os jornalistas grande parte das vezes não cumprem com a sua função de “traduzir” para português corrente o que os Doutores dos Números querem dizer.
Esta é uma crise que se agudizou com a falência do mercado dos subprime. E o que é o subprime, perguntais vós. O subprime é um crédito de risco, em que não há uma garantia real que assegure o valor que os bancos emprestam. Todos nós conhecemos dos filmes americanos a situação de se contrair uma segunda hipoteca da casa. Esta segunda hipoteca não tem uma garantia real, visto a casa já estar “penhorada” para garantir o empréstimo que foi realizado para a sua compra/construção.
Num exemplo mais prático vamos supor que saímos de casa com uma nota de 20€. Com essa nota vamos ao talho e compramos 15€ de carne, mostrando a nota ao talhante como garantia do pagamento, mas alegando que por qualquer motivo só passaremos para pagar mais tarde, com juros claro. De seguida passamos na frutaria onde compramos mais 12€ de fruta, e repetimos o processo de mostrar a nota. Passamos na peixaria e mais 17€ de compras com a mesma técnica. E por aí adiante. Ao chegar ao fim do dia temos compras sem pagar (ou seja, contraímos créditos) no valor de 80€ ou 90€. E a única garantia que demos foi a mesma nota de 20€.
Se não possuirmos mais dinheiro além dessa famosa nota de 20€ não será preciso dizer que o talho, a frutaria, a peixaria e todos os outros comércios dificilmente conseguirão reaver o dinheiro. Houve portanto um conjunto de empréstimos, todos eles menores do que a garantia apresentada, mas todos eles tendo a mesma garantia.
Claro que no caso banca e do subprime isto não é tão simples: envolve juros que não são fixos e todo um conjunto de manobras às quais os bancos tão bem já nos habituaram. E claro que o que estava em causa não eram alguns géneros alimentares mas sim o tão popular crédito ao consumo. Créditos esses, que tendo a casa por garantia, a tal casa que já servia de garantia ao seu próprio pagamento, e que servia para comprar carro, comprar computador, ir de férias, móveis novos, etc, etc…
Mas, tal como no caso dos bancos que queriam era garantir rendas através do pagamento das prestações do empréstimo, também os comerciantes que enganámos com a nota de 20€ são os culpados. A miragem do lucro dos juros levou-os a fiar as compras que fizemos sem se preocuparem com a real possibilidade de retorno do dinheiro.
Na sua contenda de comprometer cada vez mais e mais o consumidor e de garantir fluxos constantes de entrada de dinheiro (através do pagamento das prestações dos referidos créditos) a banca foi facilitando uma forma de crédito sem alguma garantia real. E facilitou tanto, mas tanto que chegou a um ponto em que não conseguia cobrar uma parte significativa do dinheiro que emprestou. E essa parte que não se consegue cobrar, os incobráveis subprime, é qualquer coisa como 1.000.000.000.000 de dólares (são 12 zeros, um bilião – um milhão de milhão), ou 735 mil milhões de euros. Isto é tanto dinheiro que se os bancos fossem de porta em porta cobrá-lo em notas de 500€ não chegaria uma pequena frota de 12 camiões. São mais de 12 contentores cheiinhos de notas de 500€, até ao ciminho.
E porque se chega a este ponto? Chega-se a este ponto porque a banca deixa de cumprir a sua função de gestor de poupança e potenciador de investimento. Os bancos deixam de ser as caixas fortes onde púnhamos as nossas economias que permitiam a outros, através da contracção de empréstimos, organizar a sua vida e fazer investimentos. Os bancos são agora sorvedouros de dinheiro cujo objectivo é tão só pôr a mão à maior quantidade possível de dinheiro para que algures um alto gestor possa comprar iates que custam milhões de euros; beber garrafas de vinho cujo preço dava para alimentar a família de qualquer um de nós por vários meses ou mesmo anos; comprar ilhas privadas onde vão passar meia dúzia de dias por ano enquanto cobram juros, taxas, comissões e sabe-se lá que mais a quem pede dinheiro emprestado para poder construir um tecto.
Agora, tudo isto parece estar a descambar… Todos os dias assistimos à notícia de mais um banco que foi salvo pela intervenção do estado. Um pouco por todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos, o expoente máximo da economia de mercado, assistimos à compra por parte do Estado de bancos e seguradoras para evitar a sua falência. Uma destas instituições, a AIG – American International Group, é responsável pelo pagamento de 70% das reformas norte-americanas. Os tais PPR e as tais privatizações das reformas que até há pouco nos queriam vender. Se os fundos de investimento desta instituição fossem à falência 70% dos reformados americanos veriam seriamente ameaçadas as suas pensões.
Agora, tal qual bombeiro de serviço, quando os senhores que bebem conhaques e fumam charutos (de que, a bem da nossa saúde cardíaca, convém nem sabermos o preço) conseguiram dar cabo do sistema que tão ferozmente defendiam, é o Estado que lhes vai por uma mãozinha por baixo e safá-los do fim. O mesmo Estado que tantas vezes abominaram e apregoaram que os deviam era deixar trabalhar livremente. O mesmo Estado que, acatando esses pregões, foi criando leis que davam cada vez mais liberdade a uma banca glutona à qual só interessam os lucros e para a qual os clientes são meros alvos a explorar. Agora é para esse mesmo Estado, que permitiu que tudo isto acontecesse, que se viram esses senhores a pedir que salvem da destruição estes bancos, nacionalizando parte deles. Pena que só agora esse Estado, o nosso e outros, tenha reparado o quão certo estava Vasco Gonçalves quando há 33 anos, presidindo ao II Governo Provisório e antevendo esta fome de capital, nacionalizou duma penada toda o sector.
O papel dos bancos na sociedade é promover a poupança e potenciar o investimento, retribuindo a confiança que as pessoas neles depositam através da criação de oportunidades de financiamento para o desenvolver da economia, criando emprego através da dinamização das pequenas e médias empresas e melhorando a condição de vida das populações. Como há 33 anos o Companheiro Vasco anteviu isso nunca aconteceu. Agora, depois da asneira feita, e com grandes custos para o contribuinte (porque sempre que o mar bate na rocha quem se quilha é o mexilhão) lá vamos nós tentando remendar o mal que foi feito.

 


sinto-me:

publicado por Mário Lobo às 20:29
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