A Palavra Livre de Mortágua

Quinta-feira, 22 de Abril de 2010
As Portas que Abril Abriu

Era uma vez um país

onde entre o mar e a guerra

vivia o mais infeliz

dos povos à beira-terra.

 

Onde entre vinhas sobredos

vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

um povo se debruçava

como um vime de tristeza

sobre um rio onde mirava

a sua própria pobreza.

 

Era uma vez um país

onde o pão era contado

onde quem tinha a raiz

tinha o fruto arrecadado

onde quem tinha o dinheiro

tinha o operário algemado

onde suava o ceifeiro

que dormia com o gado

onde tossia o mineiro

em Aljustrel ajustado

onde morria primeiro

quem nascia desgraçado.

 

 

Era uma vez um país

de tal maneira explorado

pelos consórcios fabris

pelo mando acumulado

pelas ideias nazis

pelo dinheiro estragado

pelo dobrar da cerviz

pelo trabalho amarrado

que até hoje já se diz

que nos tempos do passado

se chamava esse país

Portugal suicidado.

 

Ali nas vinhas sobredos

vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

vivia um povo tão pobre

que partia para a guerra

para encher quem estava podre

de comer a sua terra.

 

Um povo que era levado

para Angola nos porões

um povo que era tratado

como a arma dos patrões

um povo que era obrigado

a matar por suas mãos

sem saber que um bom soldado

nunca fere os seus irmãos.

 

Ora passou-se porém

que dentro de um povo escravo

alguém que lhe queria bem

um dia plantou um cravo.

 

Era a semente da esperança

feita de força e vontade

era ainda uma criança

mas já era a liberdade.

 

Era já uma promessa

era a força da razão

do coração à cabeça

da cabeça ao coração.

Quem o fez era soldado

homem novo capitão

mas também tinha a seu lado

muitos homens na prisão.

 

Esses que tinham lutado

a defender um irmão

esses que tinham passado

o horror da solidão

esses que tinham jurado

sobre uma côdea de pão

ver o povo libertado

do terror da opressão.

 

Não tinham armas é certo

mas tinham toda a razão

quando um homem morre perto

tem de haver distanciação

uma pistola guardada

nas dobras da sua opção

uma bala disparada

contra a sua própria mão

e uma força perseguida

que na escolha do mais forte

faz com que a força da vida

seja maior do que a morte.

 

Quem o fez era soldado

homem novo capitão

mas também tinha a seu lado

muitos homens na prisão.

 

Posta a semente do cravo

começou a floração

do capitão ao soldado

do soldado ao capitão.

 

Foi então que o povo armado

percebeu qual a razão

porque o povo despojado

lhe punha as armas na mão.

 

Pois também ele humilhado

em sua própria grandeza

era soldado forçado

contra a pátria portuguesa.

 

Era preso e exilado

e no seu próprio país

muitas vezes estrangulado

pelos generais senis.

 

Capitão que não comanda

não pode ficar calado

é o povo que lhe manda

ser capitão revoltado

é o povo que lhe diz

que não ceda e não hesite

– pode nascer um país

do ventre duma chaimite.

 

Porque a força bem empregue

contra a posição contrária

nunca oprime nem persegue

– é força revolucionária!

 

Foi então que Abril abriu

as portas da claridade

e a nossa gente invadiu

a sua própria cidade.

 

Disse a primeira palavra

na madrugada serena

um poeta que cantava

o povo é quem mais ordena.

 

E então por vinhas sobredos

vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

desceram homens sem medo

marujos soldados «páras»

que não queriam o degredo

dum povo que se separa.

E chegaram à cidade

onde os monstros se acoitavam

era a hora da verdade

para as hienas que mandavam

a hora da claridade

para os sóis que despontavam

e a hora da vontade

para os homens que lutavam.

 

Em idas vindas esperas

encontros esquinas e praças

não se pouparam as feras

arrancaram-se as mordaças

e o povo saiu à rua

com sete pedras na mão

e uma pedra de lua

no lugar do coração.

 

Dizia soldado amigo

meu camarada e irmão

este povo está contigo

nascemos do mesmo chão

trazemos a mesma chama

temos a mesma ração

dormimos na mesma cama

comendo do mesmo pão.

Camarada e meu amigo

soldadinho ou capitão

este povo está contigo

a malta dá-te razão.

 

Foi esta força sem tiros

de antes quebrar que torcer

esta ausência de suspiros

esta fúria de viver

este mar de vozes livres

sempre a crescer a crescer

que das espingardas fez livros

para aprendermos a ler

que dos canhões fez enxadas

para lavrarmos a terra

e das balas disparadas

apenas o fim da guerra.

 

Foi esta força viril

de antes quebrar que torcer

que em vinte e cinco de Abril f

ez Portugal renascer.

 

E em Lisboa capital

dos novos mestres de Aviz

o povo de Portugal

deu o poder a quem quis.

 

Mesmo que tenha passado

às vezes por mãos estranhas

o poder que ali foi dado

saiu das nossas entranhas.

Saiu das vinhas sobredos

vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

onde um povo se curvava

como um vime de tristeza

sobre um rio onde mirava

a sua própria pobreza.

 

E se esse poder um dia

o quiser roubar alguém

não fica na burguesia

volta à barriga da mãe.

Volta à barriga da terra

que em boa hora o pariu

agora ninguém mais cerra

as portas que Abril abriu.

 

Essas portas que em Caxias

se escancararam de vez

essas janelas vazias

que se encheram outra vez

e essas celas tão frias

tão cheias de sordidez

que espreitavam como espias

todo o povo português.

 

Agora que já floriu

a esperança na nossa terra

as portas que Abril abriu

nunca mais ninguém as cerra.

 

Contra tudo o que era velho

levantado como um punho

em Maio surgiu vermelho

o cravo do mês de Junho.

 

Quando o povo desfilou

nas ruas em procissão

de novo se processou

a própria revolução.

 

Mas eram olhos as balas

abraços punhais e lanças

enamoradas as alas

dos soldados e crianças.

 

E o grito que foi ouvido

tantas vezes repetido

dizia que o povo unido

jamais seria vencido.

 

Contra tudo o que era velho

levantado como um punho

em Maio surgiu vermelho

o cravo do mês de Junho.

 

E então operários mineiros

pescadores e ganhões

marçanos e carpinteiros

empregados dos balcões

mulheres a dias pedreiros

reformados sem pensões

dactilógrafos carteiros

e outras muitas profissões

souberam que o seu dinheiro

era presa dos patrões.

 

A seu lado também estavam

jornalistas que escreviam

actores que se desdobravam

cientistas que aprendiam

poetas que estrebuchavam

cantores que não se vendiam

mas enquanto estes lutavam

é certo que não sentiam

a fome com que apertavam

os cintos dos que os ouviam.

 

Porém cantar é ternura

escrever constrói liberdade

e não há coisa mais pura

do que dizer a verdade.

 

E uns e outros irmanados

na mesma luta de ideais

ambos sectores explorados

ficaram partes iguais.

 

Entanto não descansavam

entre pragas e perjúrios

agulhas que se espetavam

silêncios boatos murmúrios

risinhos que se calavam

palácios contra tugúrios

fortunas que levantavam

promessas de maus augúrios

os que em vida se enterravam

por serem falsos e espúrios

maiorais da minoria

que diziam silenciosa

e que em silêncio fazia

a coisa mais horrorosa:

minar como um sinapismo

e com ordenados régios

o alvor do socialismo

e o fim dos privilégios.

 

Foi então se bem vos lembro

que sucedeu a vindima

quando pisámos Setembro

a verdade veio acima.

 

E foi um mosto tão forte

que sabia tanto a Abril

que nem o medo da morte

nos fez voltar ao redil.

 

Ali ficámos de pé

juntos soldados e povo

para mostrarmos como é

que se faz um país novo.

 

Ali dissemos não passa!

E a reacção não passou.

Quem já viveu a desgraça

odeia a quem desgraçou.

 

Foi a força do Outono

mais forte que a Primavera

que trouxe os homens sem dono

de que o povo estava à espera.

 

Foi a força dos mineiros

pescadores e ganhões

operários e carpinteiros

empregados dos balcões

mulheres a dias pedreiros

reformados sem pensões

dactilógrafos carteiros

e outras muitas profissões

que deu o poder cimeiro

a quem não queria patrões.

 

Desde esse dia em que todos

nós repartimos o pão

é que acabaram os bodos

— cumpriu-se a revolução.

 

Porém em quintas vivendas

palácios e palacetes

os generais com prebendas

caciques e cacetetes

os que montavam cavalos

para caçarem veados

os que davam dois estalos

na cara dos empregados

os que tinham bons amigos

no consórcio dos sabões

e coçavam os umbigos

como quem coça os galões

os generais subalternos

que aceitavam os patrões

os generais inimigos

os generais garanhões

teciam teias de aranha

e eram mais camaleões

que a lombriga que se amanha

com os próprios cagalhões.

Com generais desta apanha

já não há revoluções.

 

Por isso o onze de Março

foi um baile de Tartufos

uma alternância de terços

entre ricaços e bufos.

 

E tivemos de pagar

com o sangue de um soldado

o preço de já não estar

Portugal suicidado.

 

Fugiram como cobardes

e para terras de Espanha

os que faziam alardes

dos combates em campanha.

 

E aqui ficaram de pé

capitães de pedra e cal

os homens que na Guiné

aprenderam Portugal.

 

Os tais homens que sentiram

que um animal racional

opõe àqueles que o firam

consciência nacional.

 

Os tais homens que souberam

fazer a revolução

porque na guerra entenderam

o que era a libertação.

 

Os que viram claramente

e com os cinco sentidos

morrer tanta tanta gente

que todos ficaram vivos.

 

Os tais homens feitos de aço

temperado com a tristeza

que envolveram num abraço

toda a história portuguesa.

 

Essa história tão bonita

e depois tão maltratada

por quem herdou a desdita

da história colonizada.

 

Dai ao povo o que é do povo

pois o mar não tem patrões.

– Não havia estado novo

nos poemas de Camões!

 

Havia sim a lonjura

e uma vela desfraldada

para levar a ternura

à distância imaginada.

 

Foi este lado da história

que os capitães descobriram

que ficará na memória

das naus que de Abril partiram

 

das naves que transportaram

o nosso abraço profundo

aos povos que agora deram

novos países ao mundo.

 

Por saberem como é

ficaram de pedra e cal

capitães que na Guiné

descobriram Portugal.

 

E em sua pátria fizeram

o que deviam fazer:

ao seu povo devolveram

o que o povo tinha a haver:

Bancos seguros petróleos

que ficarão a render

ao invés dos monopólios

para o trabalho crescer.

Guindastes portos navios

e outras coisas para erguer

antenas centrais e fios

dum país que vai nascer.

 

Mesmo que seja com frio

é preciso é aquecer

pensar que somos um rio

que vai dar onde quiser

 

pensar que somos um mar

que nunca mais tem fronteiras

e havemos de navegar

de muitíssimas maneiras.

 

No Minho com pés de linho

no Alentejo com pão

no Ribatejo com vinho

na Beira com requeijão

e trocando agora as voltas

ao vira da produção

no Alentejo bolotas

no Algarve maçapão

vindimas no Alto Douro

tomates em Azeitão

azeite da cor do ouro

que é verde ao pé do Fundão

e fica amarelo puro

nos campos do Baleizão.

Quando a terra for do povo

o povo deita-lhe a mão!

 

É isto a reforma agrária

em sua própria expressão:

a maneira mais primária

de que nós temos um quinhão

da semente proletária

da nossa revolução.

 

Quem a fez era soldado

homem novo capitão

mas também tinha a seu lado

muitos homens na prisão.

 

De tudo o que Abril abriu

ainda pouco se disse

um menino que sorriu

uma porta que se abrisse

um fruto que se expandiu

um pão que se repartisse

um capitão que seguiu

o que a história lhe predisse

e entre vinhas sobredos

vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

um povo que levantava

sobre um rio de pobreza

a bandeira em que ondulava

a sua própria grandeza!

De tudo o que Abril abriu

ainda pouco se disse

e só nos faltava agora

que este Abril não se cumprisse.

 

Só nos faltava que os cães

viessem ferrar o dente

na carne dos capitães

que se arriscaram na frente.

 

Na frente de todos nós

povo soberano e total

que ao mesmo tempo é a voz

e o braço de Portugal.

 

Ouvi banqueiros fascistas

agiotas do lazer

latifundiários machistas

balofos verbos de encher

e outras coisas em istas

que não cabe dizer aqui

que aos capitães progressistas

o povo deu o poder!

E se esse poder um dia

o quiser roubar alguém

não fica na burguesia

volta à barriga da mãe!

 

Volta à barriga da terra

que em boa hora o pariu

agora ninguém mais cerra

as portas que Abril abriu!

 

Ary dos Santos


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Sexta-feira, 26 de Março de 2010
Os Velhos

Les vieux ne parlent plus ou alors seulement parfois du bout des yeux

(Os velhos não falam mais ou então somente por vezes do fundo dos olhos)

Même riches ils sont pauvres, ils n'ont plus d'illusions et n'ont qu'un cœur pour deux

(Mesmo ricos são pobres, não têm mais ilusões e não têm mais que um coração para dois)

Chez eux ça sent le thym, le propre, la lavande et le verbe d'antan

(Em sua casa cheira a tomilho, a limpo, a lavanda e ao pretérito perfeito)

Que l'on vive à Paris on vit tous en province quand on vit trop long temps

(Ainda que vivamos em Paris vivemos todos na provincia quando vivemos muito tempo)

Est-ce d'avoir trop ri que leur voix se lézarde quand ils parlent d'hier

(E é de terem rido muito que as suas vozes se amargam quando falam d’ontem)

Et d'avoir trop pleuré que des larmes encore leur perlent aux paupières

(E de ter chorado muito que as lágrimas ainda brilham como perolas nas suas palpebras)

Et s'ils tremblent un peu est-ce de voir vieillir la pendule d'argent

(E se treme um pouco é por ver envelhecer o pendulo do relógio de prata)

Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, qui dit: je vous attends

(Que ronrona na sala, que diz sim que diz não, que diz: espero-vos)

Les vieux ne rêvent plus, leurs livres s'ensommeillent, leurs pianos sont fermés

(Os velhos não sonham mais, os seus livros estão ensonados, os seus pianos fechados)

Le petit chat est mort, le muscat du dimanche ne les fait plus chanter

(O pequeno gato está morto, o mascate de domingo já não os faz cantar)

Les vieux ne bougent plus leurs gestes ont trop de rides leur monde est trop petit

(Os velhos não se mexem mais os seus gestos têm muitas rugas e o seu mundo é muito pequeno)

Du lit à la fenêtre, puis du lit au fauteuil et puis du lit au lit

(Da cama à janela, depois da cama à poltrona e depois da cama à cama)

Et s'ils sortent encore bras dessus bras dessous tout habillés de raide

(E se saiem ainda de braço no braço todos engomados)

C'est pour suivre au soleil l'enterrement d'un plus vieux, l'enterrement d'une plus laide

(É para acompanhar ao sol o funeral d’um ainda mais velho, o enterro duma mais feia)

Et le temps d'un sanglot, oublier toute une heure la pendule d'argent

(E o tempo d’um soluço, esquecer a toda a hora o pendulo de prata)

Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, et puis qui les attend

(Que ronrona na sala, que diz sim que diz não, e depois que os espera)

Les vieux ne meurent pas, ils s'endorment un jour et dorment trop long temps

(Os velhos não morrem, deixam-se dormir um dia e dormem por muito tempo)

Ils se tiennent par la main, ils ont peur de se perdre et se perdent pourtant

(Têm-se pela mão, têm medo de se perder e perdem-se na mesma)

Et l'autre reste là, le meilleur ou le pire, le doux ou le sévère

(E o outro fica lá, o melhor ou o pior, o doce ou o severo)

Cela n'importe pas, celui des deux qui reste se retrouve en enfer

(Isso não importa, aquele que resta fica num inferno)

Vous le verrez peut-être, vous la verrez parfois en pluie et en chagrin

(Talvez o venham a ver, irão vê-lo algumas vezes na chuva e na tristeza)

Traverser le présent en s'excusant déjà de n'être pas plus loin

(A atravessar o presente já a desculparem-se de não estarem já mais longe)

Et fuir devant vous une dernière fois la pendule d'argent

(E fugir diante de vós uma última vez o pendula de prata)

Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, qui leur dit : je t'attends

(Que ronrona na sala, que diz sim que diz não, que lhes diz: espero-te)

Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non et puis qui nous attend.

(Que ronrona na sala, que diz sim que diz não e depois que nos espera)

 

O texto acima, em tradução livre do francês, é a letra duma música de Jaques Brel. Descreve a velhice, dos que já são velhos e dos que serão velhos amanhã, pois o relógio de prata não para e tem paciência para esperar por nós todos.

Tive recentemente conhecimento de que a câmara pretende vender o Edifício da Escola Primária de Trezoi. Esta venda surge como facto consumado sem nunca se ter dado à discussão uma outra alternativa.

Construida há mais tempo do que muitos de nós se lembrarão este foi um edifício que esteve sempre ao serviço da população de Trezoi e das aldeias vizinhas. E é ao uso do povo que deve ficar. Isto não só em relação à escola de Trezoi, onde estudou também grande parte da minha familia. Onde aprenderam a ler e a escrever, a somar e subtrair. Onde aprenderam os nomes das serras e dos rios. Onde começaram a aprender a serem Mulheres e Homens, a ser Cidadãos Portugueses. Mas em relação a todas as outras Escolas do nosso Concelho, onde estudámos todos nós. Foi ainda nessas Escolas que aprendemos que a sociedade é um todo. Que tudo interage com tudo. Que aprendemos a História e a continuidade. Que aprendemos a viver juntos e a olhar uns pelos outros.

A típica Escola Primária Portuguesa é um edifício de paredes sólidas, construído em regra num local alto e soalheiro, virado a sul para optimizar a exposição solar. São em regras rodeadas por um generoso pátio. Claro que no geral a construção deixará alguma coisa a desejar face aos edifícios modernos, principalmente no que toca à capacidade de isolamento térmico. Mas nada que pouco a pouco, escola a escola, não se pudesse resolver.

O Concelho de Mortágua é, como infelizmente já disse várias vezes, um dos mais envelhecidos a oeste do maciço da Serra da Estrela. Claro que temos alguns serviços de suporte aos nossos velhos, que tão queridos nos são, avós e avôs de todos nós. Mas tudo o que possamos fazer por aqueles que nos trouxeram ao mundo e criaram será pouco.

Todas estas escolas, entre um milhão de outras coisas, podiam ser reconvertidas em centros de dia, entregues à associações locais. Há concelhos bem próximos do nosso em que os Centos de Dia existem em quase todas as aldeias, o de Tábua por exemplo. A criação destes Centros de Dia permitiria que os velhos não tivessem mundos pequenos entre a cama, a janela, a cadeia e a cama, como nos diz o Brel.

Permitia criar pontos de encontro onde juntos tivessem o seu almoço, na mesma distribuido pelos serviços sociais patrocinados pela Autarquia, ao invés de o fazerem isolados no seu mundo pequeno.

Permitia a criação de postos de trabalho, pois seria preciso quem os acompanhasse. Não só nas suas refeições mas também na organização de actividades lúdicas. Que os ajudassem na limpeza das suas casas e roupas, tarefas que começam a pesar à medida que os seus movimentos se enchem de rugas.

E quão maravilhoso é rodearmos-nos dum grupo desses Senadores da nossa sociedade e ouvir as suas vozes roucas, ver as pérolas nas suas pálpebras, acordar os seus livros e abrir os seus pianos. E sobretudo evitar que se limitem a esperar na chuva e na tristeza que o pêndulo de prata deixe de dizer sim e dizer não para eles.

Devemos-lhes isso. Manter viva a chama que durante tantos anos iluminou as suas aldeias. Devemos-nos isso.

Aos ilustres membros da Câmara Municipal de Mortágua tenho a pedir que não vendam a Escola de Trezoi. Não vendam nenhuma das Escolas.

As Escolas são nossas. De nós todos. Ponham-nas ao nosso uso. E se não soubermos como o fazer, então tratem de nos ensinar. Pois é também essa a vossa função: ensinar-nos a ser melhores cidadão.


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Domingo, 11 de Maio de 2008
Barcos Gregos

Em Dezembro de 1985 sai o album "Cerco" dos Xutos & Pontapés.

Nesse album há uma música que fala de um certo sufoco: "falta-me o ar, falta-me emprego para cá ficar".

Diz-nos agora, mais de 22 anos volvidos, a OCDE que o número de emigrantes portugueses aumentou 52,6% entre 2000 e 2006.

 

 


 

Barcos Gregos

 

Já estou farto de procurar
Um sítio para me encaixar
Mas não pode ser
Está tudo cheio, tão cheio, cheio, cheio
Mas o que é que eu vou fazer
Eu vou para longe, para muito longe
Fazer-me ao mar, num dia negro
Vou embarcar, num barco grego
Falta-me o ar, falta-me emprego
Para cá ficar
Já estou farto de descobrir
Tantas portas por abrir
Mas não pode ser, é tudo feio, tão feio, feio
Mas o que é que eu vou fazer
 

 


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Quarta-feira, 13 de Fevereiro de 2008
O Operário em Construção

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

 

Vinicius de Moraes


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