A Palavra Livre de Mortágua

Sábado, 27 de Agosto de 2011
Pendências e Modernices

 

1.     A Sofismada Truncagem

Na edição passada deu este jornal à estampa um texto com o título “A Liberdade de Escolher”. O seu autor usa-se de fontes várias para tentar explicar o que parece desconhecer, como se pode verificar por uma leitura atenta do seu escrito, sobretudo se em justaposição às fontes enunciadas. Neste exercício são suprimidas partes fundamentais dos textos que lhe servem de apoio, sem se preocupar em assinalar essa supressão, para justificar a sua opinião.

Confunde os conceitos de Bolchevique com Velha Guarda Bolchevique, ao copiar a parte errada da página da Wikipédia[i]. Suprime cirurgicamente quer palavras quer frases da definição de Centralismo Democrático patente na Infopédia[ii]. Quanto à referida fonte do ISCTE nada poderei afirmar pois não a consegui encontrar, mas ainda assim faço fé na sua palavra. Encontrei no entanto num site brasileiro sobre as ciências humanas num texto intitulado “Centralismo Democrático”[iii] que me parece ser bastante semelhante ao utilizado.

Mas de todas a mais insidiosa é a truncagem do excerto que copia dos Estatutos do Partido Comunista Português.

Deixo aqui tão só a correcção e a cópia, na íntegra, do conteúdo do artigo 16º, ponto 2, alínea h) dos Estatutos do Partido Comunista Português[iv] e convido o leitor a compará-lo com a redacção que o referido escriba lhe deu no referido texto:

“Artigo 16º

2. São princípios orgânicos fundamentais:

h) O cumprimento das disposições estatutárias por todos os membros do Partido e a não admissão de fracções - entendidas como a formação de grupos ou tendências organizadas - que desenvolvam actividades em torno de iniciativas, propostas ou plataformas políticas próprias.”

Deixo-vos também a transcrição de um pedaço dos Estatutos do Partido Socialista[v], Partido a cuja Organização Concelhia o referido autor preside. Deixo-a para que possam descobrir outras diferenças, para além da semântica, entre um e outro preceito:

“Artigo 6º (Do direito de tendência)

1. O Partido Socialista reconhece aos seus membros o direito de identificação com correntes de opinião interna compatíveis com os seus objectivos e de se exprimirem publicamente no respeito pela disciplina partidária.

2. Não é admitida a organização autónoma de tendências nem a adopção de denominação política própria.”

Passemos então à história e será de começar por uma pequena referência linguística. Em russo diz-se bolche (больше) para dizer maior, e menche (меньше) para dizer menor. De onde temos Bolchevique (большевик) – partidário do maior (ou da maioria) – e Menchevique (меншевик) – partidário do menor (ou minoria).

No 2º Congresso[vi] do Partido Social Democrata dos Trabalhadores Russos (PSTDR), realizado em 1903 em Bruxelas e Londres, é delineada uma clivagem que viria a perdurar até aos dias de hoje entre os partidos (ou partidários) defensores, ou ditos defensores, duma sociedade Socialista como objectivo final das suas políticas.

Esta clivagem prendeu-se com o modelo pretendido para a inscrição de membros no PSDTR. Um grupo entendia que estes deveriam dar provas da sua militância e participar activamente no Partido de forma concertada a nível nacional, defendendo que a classe dirigente emanaria das bases e como tal dos próprios trabalhadores russos progredindo sucessivamente na estrutura hierárquica do Partido. O outro grupo defendia que os militantes deveriam ter uma participação voluntarista e esporádica e de expressão local, deixando a direcção do Partido a nível nacional entregue a uma elite intelectual. Esta divergência de ideias ganhou maior dimensão já após a Revolução de Outubro (de 1917).

No final do referido congresso os defensores da primeira corrente estavam em maioria e os da segunda corrente em minoria. Ficaram assim, por mera circunstância numérica, uns conhecidos como Bolcheviques e os outros como Mencheviques, denominação que persiste até hoje passando de meramente circunstancial a ideológica. Mais tarde uns seriam os Comunistas e os outros os Socialistas.

E não, caro amigo, não fui eu que classifiquei o seu Partido de Menchevique, foi o seu correligionário, e fundador do mesmo, Mário Soares no famoso debate televisivo que travou com Álvaro Cunhal já no distante no ano de 1975.

Por fim e por mera curiosidade note-se que a palavra “Socialismo” ou a expressão “Sociedade Socialista” não aparecem uma única vez nos Estatutos do Partido Socialista.

 

2.     Lições de Marxismo “Moderno”

Temos nos últimos dias sido surpreendidos com aquilo que ainda há poucas semanas poderíamos considerar como sendo os comentários mais aberrantes por parte de titulares de grandes fortunas mundiais. Começou por um artigo em que Warren Buffet, no New York Times[vii], pedia para que o governo americano deixasse de mimar tanto os ricos e teve o seu mais recente episódio numa tomada de posição colectiva dos detentores das 16 maiores fortunas pessoais francesas, na revista Le Nouvel Observateur[viii], com o auto explanatório título de, em tradução livre, “Cobrem-nos impostos!”.

Já anteriormente o “Dr. Doom”, com o é intitulado o economista Nouriel Roubini depois de ter previsto a explosão da bolha do imobiliário com 3 anos de antecedência, tinha defendido a nacionalização da banca[ix] como solução para o combate à crise do crédito. Numa entrevista para o Wall Street Journal[x] Roubini aponta aquilo que já Marx tinha anunciado, que “o capitalismo chegará ao ponto em que se destrói a si próprio”, e Roubini vai mais longe e sentencia: “não se pode continuar a deslocar receitas do trabalho para o capital”. Acrescenta ainda o economista que “faz sentido individualmente que todas as empresas queiram é sobreviver e prosperar, por isso reduzem ainda mais o custo do trabalho, mas o meu custo do trabalho é o rendimento e consumo de alguém.”

Pergunte-se a um qualquer comerciante da nossa praça e ele dirá o quanto sentiu a redução de cerca de 20% nos salários de alguns funcionários públicos entre 2000 e 2010, acompanhado de reduções semelhantes ou ainda maiores nos vencimentos do sector privado. A ausência de dinheiro no bolso dos consumidores leva à asfixia da economia. A austeridade desejada pelo nosso governo, que afecta muito mais os baixos e médios rendimentos, só levará ao agravar do fosso entre ricos e pobres. De referir que Portugal é, juntamente com a Espanha, o país da Zona Euro em que a diferença de rendimentos entre os que mais e os que menos ganham é maior. Os portugueses que se encontram entre os 20% melhor remunerados receberam no seu total 6 vezes mais que o total dos 20% menos remunerados do país[xi]. Este rácio chegou a ser de 7,4 no final mandato de Durão Barroso enquanto Primeiro-Ministro (2003), tendo desde então descido timidamente.

A jeito de conclusão remata ainda Roubini que o problema da crise do crédito não se pode resolver com liquidez. São apontadas 3 soluções: o crescimento económico (que ele classifica de anémico), a poupança (mas com a poupança reduz o consumo e como tal a receita) ou a inflação (com todos os contras que possa trazer). Esgotadas estas três possibilidades resta renegociar a dívida. O tal renegociar da dívida que todos denunciavam como sendo um apelo ao não pagamento da dívida, mas que a europa nos veio a propor (com a extensão dos prazos de pagamento e o controlo dos juros) e que afinal nós tão lestamente aceitamos.

Afinal Marx, bem como os seus seguidores nacionais, tem razão…



[i]Wikipedia, Bolchevique – http://tinyurl.com/3gn47lp

[ii]Infopedia, Centralismo Democrático – http://tinyurl.com/436gxx6

[iii]Ciências Humanas, Centralismo Democrático – http://tinyurl.com/3mbqfly

[iv]PCP, Estatutos – http://tinyurl.com/4y2dkqy

[v]PS, Estatutos – http://tinyurl.com/3kelyua

[vi]Marxists Internet Archives (Arquivos Marxistas na Internet), II Congresso do Partido Social Democrata dos Trabalhadores Russos – http://tinyurl.com/42o26q3

[vii]New York Times – Stop Coddling the Super Rich (Parem de Mimar os Ricos) – http://tinyurl.com/3vwuttj

[viii]Le Nouvel Observateur – «Taxes-nous!» (“Cobrem-nos Impostos!”) – http://tinyurl.com/3r7p9bb

[ix]Wall Street Jounal – ‘Nationalize’ the Banks (“Nacionalizem” os Bancos) – http://tinyurl.com/blb4b2

[x]Wall Street Journal – Karl Marx was Right (Karl Marx tinha Razão) – http://tinyurl.com/3h3wkyy

[xi]Eurostat – http://tinyurl.com/3o6g5hs


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Sexta-feira, 29 de Julho de 2011
Dos Partidos e a sua Democracia Interna, ou a Pleonástica Arte da Bajulação

Nos passados dias 22 e 23 de Julho tiveram lugar, num acto alvitrado como da maior democracia possível, as eleições para Secretário-Geral (SG) do Partido Socialista (PS). Coerentes com a posição defendida pelo seu fundador Mário Soares no famoso debate com Álvaro Cunhal, em que o primeiro afirmou a diferença basilar entre o Partido Comunista Português e o seu: o primeiro Bolchevique e o segundo Menchevique – em alusão à divisão entre as visões do futuro da maioria e da minoria saídas do acto revolucionário que deu origem à União Soviética.

Para os menos dados à História relembrar que a grande diferença entre as duas correntes emergentes da Revolução de Outubro tinham a ver com a origem da classe dirigente. Enquanto os Bolcheviques defendiam que esta deveria emanar directamente da classe operária, os Mencheviques acreditavam numa elite “iluminada” e formada/treinada para o efeito de conduzir os nossos desígnios.

A escolha de eleição do seu SG por escrutínio directo, leia-se universal e secreto, é uma opção que o PS é livre de tomar. Usam-se dos meios de comunicação social para transmitir a sua ideia aos Militantes. Claro que esta comunicação pode ser enviesada pela maior influência que um ou outro candidato possa ter nos meandros da comunicação social. Mas, creiamos nesse dogma da equidistância e isenção dos órgãos de comunicação social. O que os candidatos a SG do PS vieram apresentar foram visões pessoais (?) e individuais (?) de como o seu Partido se deve reger no futuro próximo, remetendo os demais Militantes do seu Partido a meros avalistas dum ou de outro projecto.

Eleito que está o SG, bem como os delegados ao Congresso (nesta situação específica), resta ao recém-eleito ir de “terra-em-terra” apregoar a sua visão do futuro, preparando assim as bases para o Congresso.

Em qualquer organização política e/ou social, o Congresso é o ponto máximo de debate de ideias. Neste órgão máximo estão reunidos todos os Militantes, representados pelos seus Delegados. Delegados estes que, a meu ver, iriam representar a opinião daqueles que os escolheram como representantes. Isto pelo menos na minha visão Bolchevique das coisas. Mas com delegados eleitos em listas afectas às moções apresentadas (neste caso) pelos candidatos a SG, será caso para nos perguntarmos sobre quem é que estes delegados representam. À boa forma Menchevique estes Delegados são uma forma de dar mais poder à elite que representam e retirar a palavra às bases. A menos que as listas de Delegados ao Congresso sejam feitas por sorteio a aprovação da moção cujas listas mais Delegados elegeram estará virtualmente garantida.

Eleito que está o Líder e virtualmente aprovada a orientação política do Partido resta pois apregoar a boa nova. No Congresso teremos ovações e encorajamentos, tecer-se-ão louvores ao novo Líder e à sua visão. Todos, ou quase, em uníssono. Aos que não se reviram em nenhuma das moções previamente apresentadas e que consigam, miraculosamente, ser eleitos Delegados resta-lhes estoicamente fazer a defesa da sua ideia com plena consciência de que de nada servirão as suas palavras, pois a elite não bebe das bases, mas sim o contrário.

Mais tarde, quando o líder cair em desgraça, e abandonar o palco principal poucos serão os que o apoiam. Menos ainda serão os que afirmarão ter por ele votado, pois essa é a vantagem do voto secreto – poder virar a casaca sem que ninguém por isso dê conta. Discretamente todos irão apoiar o novo líder, pois é do lado dos que ganham que se quer estar. E como quem ganha é sempre um predestinado Menchevique, então é do lado dos “grandes” que se quer estar.

Ao Militante de base, resta-lhe esperar pelo restolho da divisão do espólio. Sem nada a dizer na condução dos desígnios do seu Partido enquanto se encontrar nessa condição de base terá que subir “a pulso” cedendo e cobrando favores às elites. Juntar-se o mais possível a eles e, quiçá um dia, ser um deles. Temos então os boys e seus jobs, tal qual os aios dos grandes cavaleiros que se sentavam a um canto da sala do banquete à espera que o seu senhor lhes atirasse um naco de algo comestível.

Mas pronto, em casa de cada um faça-se como cada qual.

E gostaria de apresentar as minhas saudações ao novo Secretário-geral do Partido Socialista. Saudá-lo especialmente pela eficácia da máquina que vai conduzir, e isto sobretudo no que toca à capacidade administrativa do seu Partido, e pela consciência de participação eleitoral dos seus Militantes.

No dia 21 de Julho titulava o Jornal de Notícias que “Cerca de 20 mil Militantes do PS podem votar”. Esta notícia apresentava como fonte o secretário nacional do PS para a Organização, André Figueiredo. Era dito que só 20 mil Militantes teriam a quotas em dia, portanto só esses teriam a capacidade de votar.

No dia 24 de Julho Diário de Notícias trazia os resultados do processo eleitoral interno: António José Seguro com 23.903 votos; Francisco Assis 11.257; Brancos 216; nulos 151. Tudo isto somado dá 35.527 votos, ou seja 15 mil a mais que os possíveis anunciados 3 dias antes. Um aumento de mais de 75%.

Partindo do princípio que todos os 20 mil anunciados no dia 21 de Julho votaram, o PS cobrou quotas a 15 mil Militantes em apenas 2 dias, ou seja 7.500 por dia, demonstrando assim uma grande apetência administrava financeira.

Isto, pontuado das acusações de Francisco Assis de que algumas urnas de voto já continham à hora de abertura das mesas votos no seu opositor, vem talvez esclarecer-nos quanto à Menchevique forma de fazer política «democrática».

Se dentro de casa se portam assim, como serão eles capazes de se portar no exterior.


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Segunda-feira, 1 de Dezembro de 2008
Álvaro Cunhal, Comunista de sempre...

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Quarta-feira, 13 de Fevereiro de 2008
O Operário em Construção

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

 

Vinicius de Moraes


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