A Palavra Livre de Mortágua
Sábado, 6 de Fevereiro de 2010
Quando a Memória nos Trai

É dito e sabido que a memória é traiçoeira, selectiva, cruel e injusta, pois esquece-se por vezes de coisas importantes como aquele número de telefone tão necessário por exemplo. Por vezes não esquece, ignora. Tão frequente que é termos algo “debaixo da língua” e não sair.
Por isso todos nós temos os nossos truques para guardar as coisas que nos são importantes: uma agenda para os números de telefone e para os compromissos, um caderninho para as receitas, um arquivador para as facturas da água e da luz, uma caixa de sapatos onde guardamos coisas a avulso, sem algum valor aparente mas que são os nossos pequenos tesouros. Guardamos as fotografias das férias de 1985, guardamos aquele bilhete de comboio de quando fomos ao zoológico pela primeira vez.
São infindáveis as coisas que precisamos de guardar fora da nossa cabeça, porque a cabeça esquece-se, e um dia apaga-se, como é da lei da vida. Mas a caixinha de sapatos com o bilhete do zoo ficará para sempre. Lá guardada, num sótão qualquer.
Mas mesmo nós, que com tanto zelo fomos enchendo essa caixinha com as coisas que à altura nos pareceram importantes cometemos o desleixo de não organizar essas memórias físicas. Fica tudo a monte. E se tivermos um apetite voraz pela recordação acabamos com não uma mas várias caixinhas, que guardamos em todo o lado, sem a menor ideia do que temos lá dentro. E mais... aquilo que na altura não pareceu importante procuramos agora em vão por todos esses baús de memórias. Porque não sabemos hoje o que vai ser importante amanhã, e porque não podemos guardar tudo, quando não outra coisa não faríamos para além de guardar e organizar e seleccionar e catalogar e... etc, etc...
Mas não é só o indivíduo que tem memória. Os povos também a têm. Como se explicaria, de outra forma, o que é ser português, ou francês, ou chinês. Há uma memória colectiva que nos une, a nossa velha de 900 anos. Pequenas coisas como uma palavra, ou grandes como o Mosteiro dos Jerónimos. Coisas aparentemente insignificantes como uma carta real datada de há séculos atrás, ou a fotografia de Salgueiro Maia frente à coluna militar que tomou Lisboa naquela madrugada de Abril. Os golos do Eusébio, o caminho marítimo para Índia, o Nobel de Egas Moniz, os Lusíadas de Camões... Tudo isso é a nossa memória, a nossa História. É isso que faz de nós que nós somos. Sem história, enquanto povo, não somos nada. E essa memória não se pode guardar na nossa cabeça. Nem nas caixinhas que cada um tem em sua casa.
Essa memória tem que ser guardada de forma organizada, catalogada por temas e épocas. E essa é uma tarefa grande demais para um Homem só.
O que faz de nós Mortaguenses? O facto de vivermos em Mortágua? Não será isso por certo, pois eu há mais de 10 meses que deixei a minha vila natal e não sou por isso menos Mortaguense. O que faz de nós Mortaguenses, à semelhança do que faz de nós Portugueses, é a nossa memória colectiva – a nossa História. É o TEM, é o Tomaz da Fonseca, são as Cerâmicas, é o João das Ideias, é a Câmara Velha, é a estrada velha, é o Juiz de Fora, é aquela história pequenina no jornal de “mil novecentos e carqueja”, é um sem fim de coisas que esgotaria por certo estas páginas e de outras publicações que haja.
É algo que ultrapassa cada um de nós.
E agora, pergunto eu, onde posso eu comprar um livro do Tomaz da Fonseca, se o quiser na minha colecção? Onde posso eu rever a glorioso momento que foi o Auto do Juiz de Fora e a sua transmissão televisiva? Onde posso eu encontrar o primeiro número do primeiro jornal local? Ou do mais recente?
Em lado nenhum.
A nossa memória cada um a guarda consigo. E partilhamo-la, claro, quando nos encontramos e contamos esta e aquela história. Mas mesmo essa partilha é limitada, pois nós não nascemos “no princípio dos tempos”, e por certo não ficaremos até ao fim.
Essa Memória Mortaguense terá a sua casa e o seu lugar de honra num Arquivo Municipal de Mortágua.
Arquivo esse que deve não só albergar tudo o que já foi, mas que deve activamente registar tudo o que vai sendo. Hoje em dia é fácil registar uma actuação do Orfeão Polifónico, de um dos 5 Ranchos do Concelho, de outra qualquer colectividade cultural. É fácil guardar aquela notícia de 30 segundos que passou quase no fim do telejornal que, ainda que pequenina, para nós é a maior notícia do mundo, pois fala da nossa terra.
É fácil guardar cópias de todos os jornais, de todas as revistas, de todos os livros que falem da nossa terra. Organizar um arquivo fotográfico, registar o som dos pássaros que habitam a nossa vasta floresta, o som dos riachos de pedra em pedra, do comboio, dos motosserras, de tudo...
Guardar as lendas e os contos que os nossos idosos tão bem sabem contar, e que um dia as levarão com eles dentro da sua memória. À semelhança da “parceria” de Tomaz da Fonseca e do Poeta Cavador, cabe-nos a nós registar essa memória oral.
Cabe-nos a nós registar tudo.
Tudo... guardar tudo. Pois só assim, amanhã, teremos a certeza de que guardamos o que é importante.


sinto-me:

publicado por Mário Lobo às 02:02
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6 comentários:
De Carlos a 16 de Fevereiro de 2010 às 12:40
Realmente toda a história deve ser preservada e usada no presente e para o futuro, para que possamos ter alguma consciência dos passos a dar na própria evolução...
Gosto das ideias do texto, mas fiquei confuso ao comparar com algumas ideologias já apresentadas noutros "espaços", acerca da criação de "espaços organizados e catalogados de profunda reflexão e aprendizagem" (vulgo museus) acerca da nossa história menos positiva (http://salazarices.blogs.sapo.pt/)...pergunto-me é se gostámos assim tanto da monarquia, tal vasta é a rede de museus e exposições acerca do tema...
Será que não aprendemos nada com a história dos grandes impérios que dominaram o planeta no passado, tendo para isso estudado os seus espólios (organizados e não esquecidos em sótãos)? (What's wrong whit this picture?) Duas verdades e duas sentenças...??? Dois critérios e duas maneiras de ver a mesma coisa? É algo incongruente por si mesmo...
Claro que centenas de desculpas mais ou menos elaboradas podem ser apresentadas...mas pergunto-me na mesma se não serão politiquices...daquelas que não ajudam em nada quem quer evoluir e aprender com o que de bom se fez e com o que foi mal feito.
É precisamente devido às constantes dualidades de critérios que a nossa política/sociedade anda como anda...seja qual for a orientação partidária ou posição social.
Cumprimentos cordiais


De Mário Lobo a 16 de Fevereiro de 2010 às 14:45
duas verdades, uma só sentença.
nunca em ponto algum alguém me viu dizer que não queria um museu sobre o período do fascismo. deve ser feito esse museu. o principal caminho para que os acontecimentos que levaram a 50 anos de ditadura fascista em Portugal tornem a acontecer é o esquecermo-nos deles. aquilo que eu sou e serei sempre contra é um museu de homenagem a um ditador.
desconheço que seja o "Carlos", de onde seja e o conhecimento que tem sobre o assunto do desejado museu de Santa Comba Dão. pois sobre a última dúvida eu posso dar-lhe umas luzes.
um museu da época do fascismo teria que ter todo o género de documentos históricos, os bons (se os houver) e os maus.
o espólio que a câmara de Santa Comba Dão tem em seu poder mais não é que algumas relíquias pessoais do velho ditador.
pergunto-lhe, se me quiser responder claro, que "profunda reflexão e aprendizagem" sobre o negro período de meio século poderá o prezado Carlos tirar dum estojo da barba e dum frasco de restaurador olex .
faça-se um museu sobre o período do fascismo, para que esse período nunca caia no esquecimento. mas não se faça um altar ao homem que, por exemplo, mandou 1 em cada 5 dos nossos rapazes para a guerra pois este é precisamente o tipo de informação que o Sr. . Lourenço e os seus comparsas parecem estar a esquecer-se de adicionar ao espólio do ditador.

mais esclarecimentos darei, se necessário.


De Carlos a 16 de Fevereiro de 2010 às 16:36
Olá.
Muito bem, que seja. Então a campanha deveria ser para acrescentar esses documentos históricos que afirma estarem a ser negligenciados pelos responsáveis e não ser simplesmente peremptória a luta contra a construção do mesmo, contra todas as ideologias, opiniões e crenças? É isso a liberdade no verdadeiro sentido por que se lutou? Coloco as minhas reservas, até pelo que observo da cultura da política e famosa liberdade de expressão em que inclusive a ofensa gratuita vale...
Não será uma luta dessa forma em que se gastam energias no caminho da não discussão a menos educativa para as pessoas que acedem a informação que vai sendo veiculada? O comunicado do referido blog acerca da petição fala em simplesmente impedir a construção; não deveria falar em fazer um museu de forma construtiva e holistica (como refere na sua resposta ao meu comentário) no que toca à verdadeira história? Construir algo onde cada um pudesse usufruir e fazer dela o que a liberdade de pensamento permite? Não seria este tipo de iniciativa que tanta falta faz em Portugal (onde a moda é criticar sem construir...) muito mais evolutiva?
Sempre me pareceu que o fundamentalismo, quer à direita, quer à esquerda, quer por uns motivos quer por outros, não fossem o melhor caminho por onde quer que se vá...mas isso sou em a reflectir.

Cumprimentos


De Mário Lobo a 16 de Fevereiro de 2010 às 17:15
uma leitura mais atenta não seria talvez de descurar.
a petição pede que seja impedida a construção do Museu Salazar em Santa Comba Dão.
não tenta impedir nenhum museu que relate toda a verdade sobre o período do fascismo.
mas cada um lê as partes que lhe interessam, claro.


De Carlos a 16 de Fevereiro de 2010 às 18:25
Mas ninguém disse o contrário...e se bem me recordo eu coloco questões. Porquê impedir e não ajudar a melhorar e sim fazer algo, que me permitisse por exemplo mostrar ao meu filho sem ser falacioso ou tendencioso?
Mas eu compreendo, eu vou ler melhor...

Cumprimentos


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